domingo, 28 de setembro de 2014

COMO ENGATINHAR LUDICAMENTE NA FLUÊNCIA EM ESPERANTO, A PARTIR DE UMA PROPOSTA DE PROGRESSIVIDADE PESTALOZZIANA

COMO ENGATINHAR LUDICAMENTE NA FLUÊNCIA EM ESPERANTO, A PARTIR DE UMA PROPOSTA DE PROGRESSIVIDADE PESTALOZZIANA

Josenilton kaj Madragoa

O verbo “engatinhar” aí foi colocado de propósito.
A ideia é engatinhar numa primeira fase de fluência planejada em Esperanto, sobre o macio e plano tapete das terminações gramaticais mais simples. A partir daí, após o encerebramento e prática desenvolta desse "terminoguês" ou “linguagem” de terminações, pode-se ir, por etapas, ampliando as estruturas com as formas desinenciais e polimorfêmicas mais complexas, passando-se a caminhar em passadas firmes e resolutas na estrada da fluência progressiva sem fim.
A ideia, pois, é partir do entendimento e vivência do mais simples para o mais complexo, em consonância com a proposta pedagógica do educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi.

Tudo bem. Parece óbvio. Mas não é tão simples assim como parece, pelo menos para nós, marmanjos e marmanjas, que temos a cachola já dominante das linhas de raciocínio e que é programada para pensar complexamente em nossa língua materna. É difícil ter que disciplinar o raciocínio, para recomeçar a falar com extrema simplicidade, ainda que numa língua nova, ainda que seja um desafio compensador a médio prazo. É um exercício de paciência e de inteligência emocional.

Com a natural ânsia de falar, de exprimir emoções em palavras e de construir raciocínios improvisadamente, como já costumamos fazer em nossa língua materna, há um bloqueio a todo momento, quando estamos numa conversação ou discurso numa segunda língua que ainda não dominamos fluentemente. Há vários fatores, entre os quais: redução de vocabulário e insegurança no manejo das regras de expressão genuínas da língua nova. Dificulta também, e principalmente, a própria falta de encerebramento e consequente memorização dessas mesmas regras de expressão e também de saídas inteligentes para dizer as coisas através de volteios, pontas-cabeças, inversões, dribles de corpo, perífrases, salto mortal, jogos de morfemas, duplos carpados e outros recursos de cursos e de ruas, que ajudam as pessoas a se safarem nos desafios linguísticos. Isso tudo nós fazemos em nossa língua materna, natural e inconscientemente.

É de se gizar também que há dois eus individuais que conhecem e usam intercaladamente a mesma língua materna. São o consciente, geralmente mais racional, analítico e, consequentemente, mais próximo da norma padrão em suas elocuções frasais, e o inconsciente, que tem sua própria lógica de raciocínio, quase sempre mais solta, despojada, desenfreada e muitas vezes conflitante ou arrepiante em relação à gramática formal, costumando transgredir ou entortar as regras da norma padrão e cuspindo na norma culta.
O que dificulta muito a fluência natural ou naturalizada numa segunda língua é justamente a interferência do inconsciente, que, deseducadamente, costuma arrebatar o microfone do consciente e roubar a cena da razão, com a língua materna mais livre que ele conhece e domina. Quando se começa a falar na segunda língua, dentro de um diálogo bem comportado, logo, logo, surge um fator emocional no meio da conversa e, geralmente, nessa hora, o inconsciente, impaciente e mais nervoso, quer soltar o verbo, e ele o faz com mais eloquência do que o consciente. O problema são as suas pedradas na gramática ou no léxico. E, como ele ainda não domina nada da língua nova, então quase sempre o diálogo é colapsado desconfortantemente e, por isso, logo em seguida, é transferido ou resvalado para a língua de mamãe.

Em razão das estruturas corticais solidificadas a partir do berço e das primeiras mamadas com escuta de voz, neuropsicologicamente, a fluência oral  enriquecida com o bom uso da gramática numa segunda língua será sempre mais no nível consciente do que no nível inconsciente. Isso tanto mais se evidencia, quanto mais distante já se esteja do colo nutridor de leite e de palavras maternas. Estas geralmente eram afetivas para o lactente neoconhecedor da língua, que passa por isso a funcionar inconscientemente como que uma extensão do colo da mãe. E, por isso também, a língua literalmente materna quer ocupar todo o território neuronal para o resto da vida do agora graúdo, tendendo a considerar uma segunda língua posterior como um invasor, um desagregador familiar.

O inconsciente pode até aprender, ou melhor, começar a se manifestar também na segunda língua, mas só depois de muito mais tempo do que o consciente, e nunca largando de mão a sua “desgramática própria”, sem rédeas e sem regras. Só depois de o inconsciente pegar jeito e admitir diplomaticamente a língua nova, é que a fluência surge mais confortavelmente, com graciosidade e encanto, dando prazer de se falar na segunda língua, particularmente se esta for o Esperanto, uma segunda língua com o credenciamento de ser de todas as pessoas e povos, portanto, pertencente, de forma mais ampliada, à nossa mamãe Terra. Ela deixa então de ser nova e passa a ser também uma familiar, uma segunda natureza linguística, ocupando seus recintos próprios no ambiente doméstico cerebral.
Portanto, até chegar lá, temos que exercitar tanto o consciente quanto o inconsciente na sala de aula ou de ginástica mental cognitiva, mesmo que com o inconsciente dando mais trabalho, já que ele é de comportamento difícil e irreverente, especialmente em situações emocionais. E estas surgem em nossas vidas a toda hora, não é mesmo? Daí a importância a mais de não nutrirmos o preconceito linguístico com quem quer que seja (nem permitirmos que se a exerça conosco) nas escorregadinhas gramaticais aqui, ali e acolá. Pode ser a vez de o inconsciente estar com a palavra. Além disso, mais chato do que falar errado deve ser não falar nada, concorda? Língua é para se falar, não para morrer de fome, por falta de uso real e vivo. E a língua, que é um ser vivo, só se fortalece com as vitaminas da fala e seus nutrientes de sentimento e de calorias emocionais humanas.

Ademais, a língua oral, geralmente verbalizada a quente, sempre é menos rebuscada e contém muito mais erros de gramática padrão ou culta do que a língua escrita, que é elaborada quase sempre a frio. Nunca nos esqueçamos do início do século passado, quando Guillon Ribeiro, diretor da secretaria do Senado, corrigia gramaticalmente os discursos inflamados de Ruy Barbosa na tribuna da Câmara Alta, quando eles eram passados a limpo por escrito.

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O domínio da fluência consciente é a resultante de um processo naturalmente racionalizado com exercícios diuturnos, continuadamente, meio em ritmo de solfejo. Ele só se consolida para uma produção “de ouvido”, após a plena internalização de todos os recursos didáticos disponíveis, além da prática diária da oralidade, ou pelo menos do pensamento, em Esperanto. Acresça-se a isso a imprescindível leitura diária dos grandes mestres da literatura didática progressiva, que dão as fórmulas corretas de expressões simples, com suas variáveis e possibilidades para as várias situações do dia a dia.

Escrever diariamente também é de boa chegança para o processo de educação da fluência, porque mexe igualmente com os mesmos córtices cerebrais da fala. Ademais, também pela escrita, pode-se escrever emocionado, dando-se vazão aos desejos comunicacionais do inconsciente. Este pode ser mais bem controlado e policiado no papel do que no gogó (desde que o eu consciente nunca se esqueça de passar as peneiradas de autorrevisão seja do que for que tenha sido digitado, ainda que tenha sido um simples bilhete de uma frase só (☺), antes de sua emissão mundo afora). Quanto mais se escreve melhor, tanto mais se capacita a falar melhor, em todos os níveis conscienciais, objetivamente.

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É no afã de adjutorar os iniciantes ou os candidatos a se iniciar na fluência, que propomos aqui o domínio, por um certo tempo de uso, de uma fluência em Esperanto, a partir de suas estruturas gramaticais mais simples e necessárias a expressar os pensamentos, sentimentos e ações mais corriqueiras, mas que tentem, também, expressar pensamentos, sentimentos e ações mais abstratas e complexas em si mesmas. Acreditamos que tal proposta pedagógica, a partir de uma espécie de solfejamento frasal regular e repetitivo, perfilando o raciocinador cerebral, pode facilitar o processo de aquisição da fluência de forma mais cadenciada e organizada. É uma intervenção assistida, educativa, para estimular os neurocórtices responsáveis pela fala a se aquecerem e se alongarem mais ordenadamente, como num salão de ginástica mental. Eles devem ser “malhados” até terem passado para a ponta da língua as formas de dizer em qualquer situação comunicacional, ainda que inicialmente a partir de um estoque de estruturas limitada e básica.
Esse processo de fluência progressiva estruturada é, a princípio, disciplinador e controlador, mas, a médio prazo, é empoderador e versatilizador.

Uma ideia que pode também ajudar nesse processo é se reunir um fichário de, por exemplo, mil imagens com o que mais de trivial se fala ou se percebe por aí. Essas fichas não devem conter frases descritivas, mas só imagens, para que o “ekfluanto” mesmo forme as frases descritivas correlatas, ao vê-las sequencialmente e de forma repetida.
Nas primeiras passadas de vista sobre as fichas, deve-se fraseá-las apenas com as terminações gramaticais e as preposições e conjunções mais comuns, deixando-se para fazer o recheio das frases numa segunda subetapa.
 Uma premissa é que tudo, mesmo as coisas mais complexas em si mesmas, podem ser ditas ou manifestadas verbalmente nas formas linguísticas e gramaticais mais simples, mesmo que sem toda a precisão desejada.

É necessário, antes mesmo de se iniciar na primeira etapa de exercícios propostos, o bom conhecimento preliminar das terminações gramaticais,  dos nomes (substantivos, adjetivos e pronomes), afixos, preposições e conjunções mais comuns, verbos de ações mais corriqueiras e o modo acusativo. Esses conhecimentos devem ser encerebrados com uma ‘prática teórica’ de estudos e leituras convergentemente direcionadas. Eles são pré-requisito para se praticar ludicamente a fluência no jogo de estruturas aqui proposto.
Por que ludicamente? Justamente porque a proposta deve ser vista como um jogo, um jogo de terminações gramaticais. Como um hábito divertido, devemos ficar treinando, a todo momento, o emprego desses morfemas básicos da língua, para dizer qualquer coisa, seja simples, seja complexa, buscando fazer seleções e enfatizações sintáticas, de acordo com o que nos interessar destacar nas imagens vistas ou pensadas.

Quais são as principais estruturas, nas quais podemos encaixar todos os pensamentos-frases de um dia a dia normal, e praticá-las, ainda que em pensamento, com o manejo somente de terminações gramaticais (TGs)?
Eis uma lista-exemplo:

-O ESTAS -O
-O ESTAS –A
-J
-O -AS (PREPOZICIO DE POZICIO) -O
-O -AS (PREPOZICIO DE DIREKTO) -O
-O -AS -I
-O (NETRANSITIVA VERBO)-AS
-O (TRANSITIVA VERBO)-AS
-O (TRANSITIVA VERBO)-AS -E
-O (TRANSITIVA VERBO)-AS –ON
-O -AS (PREPOZICIO DE INSTRUMENTO) -O
-O (TRANSITIVA VERBO)-AS -ON –E
-U

No caso, o “-o” representa não só substantivos, mas também nomes próprios e pronomes pessoais.

Essas estruturas em si, independentemente dos recheios, já podem servir como exercícios, ou podem ser usadas parcialmente quando não se sabe que raiz usar circunstancialmente. Por exemplo, eu estou vendo ali alguém passar montado numa bicicleta. Eu sei usar as TGs, mas não sei ainda o nome de bicicleta nem o seu gênero (veículo) em Esperanto. Posso imaginar então a frase, dizendo: “Li ir-as tie per o” (podendo, se for o caso, fazer com as mãos o gesto de pedalar). Mas, se o que eu não souber for o verbo ir, posso dizer “Li as tie per biciklo” ou  “Li as tie bicikle”. Ao invés de “Li”, posso dizer, se já souber, “Tiu”, “tiu viro”, “iu”, “La viro”, “viro” “La homo”, “homo”. A propósito, o “tie” pode ser dispensado, sem perda de sentido, substituível inclusive pelo dedo indicador. Enfim, posso até rechear o “-as”, dizendo também “Iu biciklas tie.” E por aí afora... Se a ênfase que eu quiser dar for a qualidade da bicicleta, posso dizer “Tiu o estas a”, “Tiu biciklo estas a”, “Ĝi estas a”, “Ĝi estas bela”, “Ĝi estas moderna”, “Tiu biciklo estas moderna/bela”, etc. Se a ênfase for simplesmente para o homem que está pedalando, valem “Li/la viro/tiu viro/tiu/tiu homo/la homo estas o”, “Li/la viro/tiu viro/tiu/tiu homo/la homo estas a”, “Li/la viro/tiu viro/tiu/tiu homo/la homo estas forta/alta/dika...”. Se eu quiser destacar o lugar: “Tie as o”, Tie iras o”, “io estas tie/sur tiu loko/sur la strato”...

Ainda que não se dizendo tudo o que se pensa, imagina, idealiza ou percebe em todas as suas nuances e detalhes, é possível se fluir a partir dessa estrutura básica, especialmente com a complementação por gestos, quando possível.

Relembremos que falar fluentemente não é falar rápido nem com correção modelar e plena precisão, e nem é falar difícil ou rebuscadamente que nem autor de livro. Falar fluentemente é apenas falar com desenvoltura, sem esforço, dentro da maneira que se sabe falar, considerando até seus traços de personalidade e seu estilo pessoal. É conseguir, da forma que se puder, comunicar verbalmente seus pensamentos, ideias, expressões, espantos. É dar o melhor de si no jogo verbal que se já conhece, obedecendo as regras de etiqueta da conversação. [E estas incluem, especialmente, não se falar ansiosa e disparadamente, para dar tempo ao interlocutor de também falar ou completar suas elocuções, democraticamente, ou para dar tempo à plateia de digerir, processar e apreender homeopaticamente o que se está falando.]

Com o tempo na prática da oralidade, reforçado pelas leituras intermináveis e pelo aprimoramento constante nos estudos, inclusive da retórica e da oratória, essa fluência vai cada vez mais se melhorando, se aperfeiçoando e se aproximando do estilo universal do Esperanto.

Como suplementos vitamínicos nessa ginástica mental, algumas grandes obras da literatura didática progressiva esperantista não podem deixar de ser lidas, relidas e grifadas. Eis alguns exemplos: “La Fundamento de Esperanto”, de L. L. Zamenhof; “Karlo”, de Edmond Privat; “Ili Kaptis Elzan”, “Joĉjo” e “Gerda Malaperis”, de Claude Piron; “Nova Amiko Inter Ni”, de Sylla Chaves; e “Conversational Esperanto / Ĉiutaga Esperanto”, de Don Lord. A sequência de surgimento dos elementos gramaticais desses livros pode até servir de base para a montagem das fichas acima propostas. Pode servir de inspiração, também, para a montagem de videos didáticos ilustrativos (o que aliás tem sido uma carência no movimento esperantista brasileiro). Seria interessante e atrativo se houvesse na Internet videos didáticos com dois personagens dialogando para exemplificar as estruturas gramaticais básicas aqui propostas, primeiro as terminações puras, reforçadas por gestos, e depois as terminações com recheios de radicais. [Com os recursos dos smarthphones e minicâmeras, já tem sido possível se dirigir microvideos com a mesma alta qualidade e baixo preço das camisas esperantistas do Amarílio, ou seja, “a preço de banana”.]
  
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Quando se estiver seguro e firme no uso dessas estruturas de TGs básica, usando-as inclusive dentro d’ água, de ponta-cabeça, de carreirinha, de salteado e de trás pra frente, aí deve-se ir adicionando novos grupos de morfemas (novos afixos, novas preposições e conjunções,  formações parassintéticas mais elaboradas, particípios, etc) para nova fase do jogo, e assim por diante, enriquecendo as estruturas a cada etapa, numa dinâmica evolucionária sem fim.
Entretanto, sempre que “o bicho pegar”, ou seja, diante de uma situação complexa nova, em que não venha à mente instantaneamente a fórmula frasal adequada para sua completa elocução, deve-se voltar ou voltear, no automático, para a estrutura primária, para o beabá das TGs, “na boa”. Por mais fera que já se esteja, esse retorno à etapa original do jogo ou a uma etapa anterior também deve ser sempre reexercitado. Quem já sabe o mais, nunca deve deixar de saber o menos. O basicão pode ser menos sofisticado, mais geral, simples e fundamental, mas não costuma deixar ninguém pagar mico por gaguejamentos suarentos, brancos inquietantes, hesitações amarelantes ou crimes hediondos de lesa-gramática. Ademais, o que pode ser dito de forma simples, não seja dito de forma complexa, em respeito, inclusive, ao interlocutor eventualmente ainda iniciante. É o princípio da suficiência, combinado com o princípio da humildade e da gentileza.
O importante é, no fim da conversação ou discurso, não se ter deixado o mal-estar do esnobismo ou da extravagância, muito menos sensações de incompletude, dubiedades de sentido ou lacunas raciocinais. Deve-se, após o “ĝis revido”, ter deixado o recado com uma boa impressão, com a marca da elegância e da criatividade combinadas principalmente com a reconfortante simplicidade, que a tudo a e todos tem como bastar.
Boa neuromalhação!



4 comentários:

Evandro Avellar disse...

Tre bona artikolo!!
Tiu temo estus interesa prelego en BKE, ĉu ne?

Shaolin disse...

Tre bone. Tiu artikolo estas grava. Dankon.

Josenilton kaj Madragoa disse...

Se estos specifa diskutforumo en la venonta BKE, tiu teksto povos servi kiel "paper", kune kun aliaj de aliaj auxtoroj, pri la temo flueco.

Antonio Felix disse...

Prezado Josenilton. Esse artigo esclarece e justifica porque ensinar Esperanto não é uma tarefa fácil, principalmente para pessoas da Terceira Idade, às vezes, semi-alfabetizadas.
Apreciei a maneira como você desenvolve a ideia e didaticamente orienta, como fazer e o que fazer. Parabéns querido Mestre e amigo.